quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O abrigo - Take Shelter

Curtis LaForche (Michal Shannon) era um homem comum, humilde, com um emprego razoável que lhe permitia perceber um salário modesto como chefe de equipe de uma empresa de extração de areia, casado com Samantha (Jessica Chastain) e com uma filha de seis anos - Hannah (Tova Stewart) - que sofre de problemas auditivos (a atriz é, de fato, surda). 

Mesmo com as dificuldades de uma família de classe média, adicionado o problema de sua filha, eles são pessoas felizes e que se amam, sociáveis e que vão à igreja. Têm uma boa casa em uma pequena cidade de Ohio e um bom carro, o que lhes permite, de certa forma, contemplar o american way of  life.

Entretanto, mudanças estão por vir. Curtis começa a ter pesadelos, nos quais sua família e, até mesmo, seu cão estão incluídos, além de começar a ter visões que nos remetem ao início de uma grande tempestade apocalíptica. Diante disso, começa, enfim, sua paranoia em construir um abrigo para a sua família, como forma de defesa e de proteção.

Porém, construir um abrigo demanda tempo e dinheiro. No tempo que ele deveria trabalhar, está submerso em seu abrigo, que é pensado em cada pormenor de modo que não falte nada quando a grande tempestade chegar. E o dinheiro que ele deveria usar para custear o tratamento da filha ou mesmo para a viagem das férias, ele utiliza para comprar todos os equipamentos necessário para a construção do abrigo.

Por conta disso, os problemas começam a surgir em sua família e em seu trabalho. As pessoas ao seu redor  já não conseguem vê-lo como alguém "normal".  A obsessão e a paranoia já tomaram conta de Curtis, que não pensa duas vezes em dar seu cão ao irmão, após um pesadelo no qual o animal quase arranca seu braço. Além disso, seu acesso de ira com um antigo amigo aflora toda a capacidade interpretativa de Michael Shannon, deixando-nos impressionados com tamanha intensidade.

Não obstante, ele mesmo (Curtis), em um primeiro momento, pensa que algo está errado com ele, uma vez que esses eventos possam ser talvez um prenúncio de esquizofrenia, doença que atingiu sua mãe. Por isso, visita o médico da cidade e vai a sessões com uma psicóloga. A melhora vem, mas é passageira. Diante do anúncio de uma tempestade de se aproxima, ele e sua família vão para o abrigo. Será que as suas visões se justificariam? Será que ele não estava louco como todos imaginavam?

Para não estragar a experiência fílmica de assistir a este filme, indico que a partir daqui terão spoilers que sugiro serem lidos apenas por quem já assistiu a obra.

Feito essa observação, adentramos no abrigo e Curtis, após certo tempo, não tem coragem de sair do mesmo pra ver se a tempestade já cessou. Ele afirma que ela continua, mesmo sem ter certeza. Fica na vontade de Samantha a vontade de sair daquele lugar e ver o que ocorreu. Eles saem e vislumbram um céu ensolarado e resquícios do que pode ter sido uma tempestade com uma ventania muito forte, mas nada além disso e nada que justificasse toda a obsessão de Curtis.

Visto isso, até mesmo ele começa a duvidar de si e de suas visões e pesadelos, bem como o que poderiam representar. Porém, a ida à praia da família de Curtis irá provar o quão certo ele estava e que suas visões proféticas se tornarão realidade. O abrigo agora configura-se nos braços de sua esposa e de sua filha, em uma cena que mostra que não é apenas mais um filme qualquer, mas sim uma obra que quer e consegue nos transmitir algo a mais. A loucura, se era mesmo loucura, tinha sua justificativa plausível de ser.

Ao término do filme e mesmo depois de um tempo refletindo sobre o mesmo, a impressão que ficou foi a de um paralelo entre as visões apocalípticas de Curtis e as razões dos Estados Unidos da América em suas guerras contra o terrorismo - podem parecer loucos, mas no final, estariam certos (?). E, assim, seria uma forma de buscar justificativas pra tudo o que já se foi feito, como uma busca por um mal maior.

Entretanto, é apenas uma leitura que fiz, que não necessariamente é certa ou errada, que pode ou não ser a visão do Jeff Nichols quando escreveu o roteiro. Isso é algo que parte da impressão de cada um, mas que vale discutir as interpretações.

O abrigo, enfim, conta com uma direção praticamente impecável de Jeff Nichols (diretor de Shotgun Stories, que também conta com Michael Shannon), que também assina o roteiro, além de atuações exuberantes de Michael Shannon e de Jessica Chastain (que também atuou em A Arvore da Vida e Histórias Cruzadas). Também é bom destacar a trilha sonora do filme, composta por David Wingo.

É certamente um dos grandes filmes lançados neste ano aqui no Brasil (o lançamento nos EUA foi em Outubro de 2011), que foi diretamente para as locadoras sem ter passado pelo cinema, o que me causou grande tristeza. Assisti-lo na tela grande seria um evento prazeroso, mas que nos foi renegado por motivos, certamente, financeiros, haja vista que o longa não foi tão bem recepcionado em território norte-americano - o filme teve um custo estimado em cinco milhões e rendeu apenas pouco mais de 3 milhões, segundo estimativas do IMDB. Uma pena.


Ficha Técnica:

Diretor: Jeff Nichols
Elenco: Michael Shannon, Jessica Chastain, Tova Stewart, Shea Whigham, Katy Mixon, Natasha Randall, Ron Kennard, Scott Knisley, Robert Longstreet, Heather Caldwell
Produção: Tyler Davidson, Sophia Lin
Roteiro: Jeff Nichols
Fotografia: Adam Stone
Trilha Sonora: David Wingo
Duração: 120 min.
Ano: 2011
País: EUA
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Sony Pictures
Estúdio: Strange Matter Films / Grove Hill Productions / Hydraulx

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Mouchette

A cena de abertura de “Mouchette – a Virgem Possuída” (França, 1967) mostra um caçador, na floresta, preparando armadilhas para pássaros. Ele consegue capturar um, o bicho se debate em desespero, e o homem o solta. Trata-se de uma metáfora quase óbvia para o que a platéia verá nos 75 minutos a seguir: os moradores de uma aldeia rural no interior da França, tratando com desprezo e crueldade uma adolescente de 16 anos – a menina do título – cuja mãe está à beira da morte. O filme, sempre citado como um dos mais importantes entre os treze que Robert Bresson dirigiu, oferece uma experiência perturbadora.

A narrativa é estruturada como uma série de incidentes em que Mouchette (Nadine Nortier) sofre todo tipo de abuso dos aldeões – o filme inspirou o dinamarquês Lars Von Trier a escrever o polêmico “Dogville” (2003). As colegas de colégio riem dela, os adultos a tratam com agressividade. O pai de Mouchette não lhe dirige um único olhar. Apenas uma pessoa na vila gosta dela: a mãe. Só que a mulher sofre com um câncer terminal, e passa todo o tempo deitada na cama, gritando de dor. Mouchette estuda, precisa ganhar dinheiro, e quando chega em casa nada de descanso, pois é obrigada a cuidar da mulher enferma e do irmão recém-nascido.

Há um paralelo bíblico evidente entre a história de Mouchette e a parábola de Jó, narrada no Velho Testamento. Ele é um homem obrigado a suportar sofrimentos infindáveis em uma série de tentações demoníacas. A inspiração bíblica fica ainda mais clara quando se sabe que Bresson era um diretor profundamente católico, que seguia os ensinamentos de uma corrente religiosa chamada jansenismo. A doutrina prega a disciplina rígida de corpo e espírito para alcançar a iluminação, tendo alguma semelhança com o budismo. Em “Mouchette”, Bresson parece nos dizer que a vida é uma prisão, e que somente a morte liberta.

Ao provocar uma constante sensação de incômodo no espectador, por obrigá-lo a testemunhar o sofrimento permanente de uma adolescente atormentada, “Mouchette” acaba por se mostrar um dos melhores trabalho do diretor francês. Neste filme, Bresson constrói uma situação-limite, mas nem assim abandona o impressionante rigor formal e a abordagem distante, impassível e objetiva, das ações que observa. O longa-metragem poderia fornecer farto material para um melodrama, mas a secura da narrativa afasta as emoções. Se parece uma história triste, é porque o espectador desenvolveu por ela um sentimento que é só dele, e não está no filme.

Em “Mouchette”, a orientação que o diretor gostava de dar aos atores – atuar sempre com o rosto neutro, sem expressões faciais que possam sinalizar ao público o que se deve sentir – causa um efeito perturbador. Nós assistimos à crueldade com que todos os personagens do filme tratam a jovem protagonista, e sentimos raiva por ela, porque a face dela não demonstra reação. Nada. O resultado disso é uma sensação de desorientação, de vazio, de não saber o que está ocorrendo. Bresson exige que o espectador reaprenda a olhar. Um filme do diretor francês desarma a platéia, e “Mouchette” é um dos melhores nesse sentido.

O filme ganhou lançamento no Brasil em DVD pela Silver Screen Collection. O disco é simples e contém apenas o filme, restaurado, com boa qualidade de imagem (wide 1.77:1) e som (Dolby Digital 2.0). E vale ainda abominar o ridículo subtítulo nacional.

- Mouchette, a Virgem Possuída (França, 1967)
Direção: Robert Bresson
Elenco: Nadine Nortier, Jean-Claude Guilbert, Maria Cardinal, Paul Hebert
Duração: 78 minutos

Fonte: http://www.cinereporter.com.br/criticas/mouchette-a-virgem-possuida/

Trailer feito por Jean-Luc Godard:


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Bem amadas (Christophe Honoré) e o Novo Cinema Francês

Na semana passada, fui ao Reserva Cultural assistir, com a presença inseparável da minha namorada, o novo longa-metragem meio sort of musical do diretor francês Christophe Honoré, Bem amadas, que se acostumou a fazer filmes dessa maneira, variando a narrativa convencional pelo uso frequente desse musical não tão convencional, no qual os personagens cantam de forma despretensiosa - um cantar falado, por assim dizer, típico francês.

Antes de falar do filme, gostar de fazer uma breve introdução sobre Christophe Honoré, que faz parte da "nova velha" geração do cinema francês, que se não bebe tanto da Nouvelle Vague de Truffaut e Godard, bebe da Nouvelle Vague de Chabrol e Resnais, fazendo um cinema bem autoral, pois sabemos que um filme é de Honoré quando assistimos.

Algumas características de seus filmes são a temática por muitas vezes voltada para relações homossexuais, conflitos familiares e amorosos, intensidade da melancolia e utilização, em alguns filmes, da linguagem cantada.

Nascido em 1970, Christophe escreveu alguns artigos para a famosa Les Cahiers du Cinéma e  livros destinados a jovens adultos na década de 90. Escreveu duas peças de teatro e começou na direção em 2000, com o filme Nous deux. Com esse, já são onze filmes em sua curta carreira de sucesso. Particularmente, dentre esses onze filmes, destaco: Em paris, Canções de Amor, A Bela Junie, Não minha filha, você não vai dançar e o atual Bem Amadas, todos com a participação de Louis Garrel, com quem firmou essa fiel parceria.

Vale dizer que essa nova geração do cinema francês também conta com outros nomes de peso: Cédrik Klapisch, que dirigiu Albergue Espanhol, Bonecas Russas e Paris, seus trabalhos mais reconhecidos. E se Honoré tem sua parceria com Louis Garrel, Klapisch tem a sua com outro grande ator francês da atualidade, Romain Duris. François Ozon, contemporâneo de Honoré e Klapisch, também produz um belo cinema, com alguns filmes muito bons, tais como Oito Mulheres, Swimming Pool, O Tempo que Resta, Angel, O refúgio e Potiche. 

Voltando a Bem-Amadas, o seu começo com "These boots are made for walking", onde mulheres experimentam os mais variados pares de sapatos, empolga. Estamos em Paris, na década de 1960, acompanhando Madeleine (Ludivine Sagnier, de Uma Garota Dividida em Dois, de Claude Chabrol), vendedora da loja de sapatos da cena inicial, que se torna prostituta ocasionalmente (prostitui-se para comprar seus sapatos e para não roubar), até ser resgatada por um médico tcheco, Jaromil (Radivoje Bukvic), com quem tem uma filha e se muda para a cidade de Praga. 

Porém, não consegue ficar muitos anos lá: a infidelidade do marido se une aos problemas políticos que se passava na então Tchecoslováquia, no evento histórico conhecido como Primavera de Praga, período de liberalização política do país durante a época de sua dominação pela União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. Esse período começou em 5 de Janeiro de 1968, quando o reformista eslovaco Alexander Dubček chegou ao poder, e durou até o dia 21 de Agosto quando a União Soviética e os membros do Pacto de Varsóvia invadiram o país para interromper as reformas.

É de se ressaltar que a direção de arte, figurino e cores são muito bem elaborados para a criação de um passado remoto e para a fidelização ao tempo histórico que Honoré busca retratar. Tudo é tratado com minúcia pra nos deixar vivenciar o passado.

O passado e o presente fazem um diálogo na figura de Madeleine (na maturidade interpretada por Catherine Deneuve) e sua filha, Vera (Chiara Mastroianni, filha da atriz com Marcello Mastroianni). Ela busca um amor além do amor que sente/sentiu por Clément (Louis Garrel), e o seu recente envolvimento é com Henderson (Paul Schneider), músico norte-americano gay. Clemént, por sua vez, nunca escondeu que seu amor continua e, por isso, ainda sofre por não conseguir alcançar Vera.

Todo o amor, sua ausência, o sofrimento e alegria são pontos que culminam na expressividade musical de seus personagens. Cantando, talvez, você expressa sentimentos que não se desenvolvem no diálogo convencional. Mas, ao mesmo tempo que entendemos a sua utilização, parece-me que Honoré, em Bem Amadas, exagera ao concentrar as encenações musicais em alguns momentos do filme, o que pode cansar. Se fossem tratadas de forma homogênea durante toda a projeção, talvez não fosse um problema.

Seguindo, o pai de Vera volta para França, agora interpretado pelo cineasta tcheco Milos Forman (diretor de Amadeus e Um estranho no ninho), e novamente quer ser amante de sua ex-mulher que, mesmo casada com François (Michel Delpech), não resiste e se entrega, mas não abre mão de seu casamento. É um círculo vicioso a que estes personagens se submetem. Mas isso, não obstante, traz clichês franceses à tona - de que são promíscuos, libertinos, poligâmicos, etc, o que se intensifica no avanço da relação entre Vera e Henderson, onde, aliado a isso, a consciência e o bom-senso se deixam levar pela loucura e pelo egoísmo.

Trafegando entre momentos históricos - Primavera de Praga e pós 11.09 - o longa é uma história sobre o amor, o "desamor" e suas consequências, além de ser uma espécie de antítese ao título do filme. Mas até mesmo pela pluralidade de personagens, nenhum é muito profundamente trabalhado, o que nos impede de ter uma relação mais direta com a trama. Não é um filme ruim, mas de meio termo, com suas regularidades e irregularidades.